Retratos da nova emigração brasileira
Unicamp lança dois novos atlas sobre movimentos migratórios no país. Obras revelam: perdemos profissionais qualificados; somos passagem para imigrantes do Sul Global desejosos de seguir ao Norte; brasileiros já buscam trabalho em 150 países do mundo
Publicado 27/01/2025 às 17:23 - Atualizado 27/01/2025 às 17:40
Por Marina Gama, no Jornal da Unicamp
Despedidas, partidas e chegadas, fins e recomeços: palavras que fazem parte do vocabulário de quem deixa seu país de origem para viver em outro lugar, de forma nem sempre planejada, de maneira nem sempre desejada. Se os movimentos migratórios do século XX pautavam-se por conflitos e guerras, no século XXI outras razões explicam o fenômeno. Entre essas novas motivações está o que a professora Rosana Baeninger, do Departamento de Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo), chama de “nova configuração do mundo do trabalho”.
“A migração internacional atual representa um componente da transformação global e, como [Guy] Standing argumenta, o motor dessa transformação são as novas formas de inserção laboral, em que há uma incerteza sobre o emprego, algo sempre provisório e precário. Os Estados e as nações já não garantem mais o pleno emprego e há incertezas sobre se haverá emprego formal”, diz Baeninger.
No Brasil a história não é diferente. Segundo a docente, já não cabe dizer que o processo migratório aqui ocorre apenas por motivos internos. “Temos que inserir o país no contexto global dessas transformações. As explicações sobre quem chega e sobre quem sai não estão só no Brasil, mas integram esse complexo fenômeno migratório da mobilidade humana permeada por processos de transformação no mundo do trabalho, além dos conflitos e guerras.”
Para identificar e entender esse fenômeno, o Nepo lançou recentemente dois novos volumes do Atlas Temático: Observatório da Emigração Brasileira, ambos sob a coordenação de Baeninger. O projeto, que completa 11 volumes, busca mapear os diferentes movimentos migratórios referentes ao Brasil. As obras, elaboradas a partir da análise de diversas bases de dados, buscam sistematizar informações sobre as migrações e torná-las acessíveis, contribuindo para a compreensão dos aspectos socioeconômicos e políticos que impulsionam os fluxos migratórios.
“Entre 2008 e 2012, o projeto desenvolveu-se exclusivamente no âmbito do Observatório das Migrações em São Paulo. A partir de 2018, firmamos uma parceria com o Ministério Público do Trabalho, motivada pela identificação de numerosos casos de imigrantes em situação análoga à escravidão, o que demandava um conhecimento detalhado sobre a situação migratória. Nesse contexto surgiram os atlas temáticos, e, no mesmo período, passamos a ter acesso à base de dados da Polícia Federal sobre os imigrantes estrangeiros presentes no Brasil”, afirmou a pesquisadora.
Os dois novos volumes, lançados em outubro, compõem uma trilogia. O primeiro, com o subtítulo Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), trata da entrada no Brasil, nos últimos 24 anos, de estrangeiros vindos de países lusófonos: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. O segundo volume, com o subtítulo Principais Países de Destino, abarca os movimentos migratórios que brasileiros fizeram entre 1990 e 2020 rumo a diferentes locais. O último volume, previsto para sair até o final do ano, abordará os movimentos migratórios entre os países da CPLP como um todo.
Segundo a professora, além da nova ordem do mundo do trabalho, é importante observar a posição do Brasil, um dos países protagonistas do Sul Global, no cenário internacional e como as opções políticas e as relações internacionais contribuem tanto para a imigração como para a emigração.
“Precisamos observar o reposicionamento do Brasil na geopolítica internacional, algo muito influenciado pelos acordos bilaterais. Esse novo posicionamento, especialmente no contexto do trabalho, faz com que a migração brasileira não se limite aos destinos históricos – como Portugal, Itália, Espanha, Japão e Estados Unidos – e que se expanda para mais de 150 países ao redor do mundo.”
Seja no Brasil, seja em outras localidades, tais movimentos, entretanto, inserem-se na complexidade do fenômeno migratório, em que os lugares de destino dividem-se entre os países possíveis e os países desejados. O mesmo acontece com os imigrantes em seus locais de chegada, segundo Baeninger. “O mundo está dividido entre os imigrantes desejados e os indesejados.”
Rota da lusofonia
O primeiro volume da trilogia dos atlas surge no momento em que os acordos de mobilidade entre os países de língua portuguesa passam por um processo de revisão. “O lançamento do atlas da CPLP acontece em um momento estratégico, alinhado a uma resolução que simplifica a concessão de vistos entre os países lusófonos”, explica a docente. O visto CPLP, mencionado por Baeninger, facilita o processo para os cidadãos desses países solicitarem sua entrada e permanência no Brasil.
“É fundamental compreendermos as transformações nos padrões migratórios, como observamos com os angolanos, que migraram da condição de solicitantes de refúgio para a de requerentes do visto CPLP no Brasil. Também precisamos considerar as limitações impostas, como a restrição de circulação em território português determinada pela União Europeia, mesmo para portadores do visto CPLP obtido em Portugal”, diz a pesquisadora.
A publicação compila dados históricos sobre gênero, cor/raça, faixa etária, região, ocupação, distribuição geográfica, escolaridade, estado civil e residência, facilitando a compreensão sobre quem são os estrangeiros lusófonos no Brasil e sobre os motivos que os levaram a tomar essa decisão. Baeninger ressalta que, no primeiro lugar do ranking de ocupações declaradas por esses imigrantes, estão as de professor acadêmico e estudante, um reflexo do perfil dos acordos estabelecidos pelo Brasil com esses países.
“Em uma perspectiva política, é importante perceber que o Norte Global restringe a entrada de imigrantes do Sul Global, tornando o Brasil um ‘país tampão’ no cenário migratório global. O país recebe fluxos que o Norte Global, em particular os Estados Unidos, não deseja”, analisa a pesquisadora. “Contudo essa condição é transitória. Muitos chegam inicialmente com vistos de trabalho empresariais, mas recorrem ao pedido de refúgio para permanecer. Esse é um fenômeno recente que caracteriza o início do século XXI e sugere que o Brasil, apesar de fornecer algum tipo de documentação, não é o destino final almejado.”
Cadastro único
Uma inovação significativa no caso dos últimos volumes do atlas é a utilização de dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), registro governamental que identifica famílias de baixa renda no Brasil. O levantamento revela que 415 mil imigrantes vivem em situação de vulnerabilidade no país, integrando famílias beneficiárias de programas sociais. Esse número representa aproximadamente um terço do total de imigrantes em território nacional.
A análise dos dados do CadÚnico, somado a outras fontes de informação, revelou um fenômeno particular a respeito dos emigrantes que voltaram de Portugal. Ao identificar a presença de um número expressivo de portugueses nesse registro, Baeninger constatou se tratar principalmente de descendentes de brasileiros que regressam ao país em condições precárias, necessitando de auxílio social.
“Muitos brasileiros que retornam de Portugal enfrentam uma situação de vulnerabilidade. O atlas mostra um número expressivo de portugueses no CadÚnico, mas isso se refere, na verdade, a filhos de brasileiros nascidos em Portugal, não a imigrantes portugueses. Esse fenômeno não ocorre com a mesma intensidade entre os angolanos ou os moçambicanos, pois não há tantos brasileiros nascendo nesses países.” Para a pesquisadora, a questão do retorno de brasileiros a seu país de origem representa mais um fenômeno a ser analisado pelo governo quando se trata de saber como enfrentar as novas ondas de migração e de regresso.
No exterior
Para explicar os movimentos migratórios, Baeninger recorre à metáfora do rio: “Um fluxo migratório é como um curso d’água que abre novos caminhos e cria conexões. Quando um movimento migratório se estabelece, impulsionado por um determinado contexto do passado, ele pode ramificar-se em outros fluxos ao longo do tempo”. Essa reflexão consta da introdução do segundo volume do atlas, que mapeou 150 destinos escolhidos por brasileiros e brasileiras para migrar, entre 1990 e 2020.
Itália, Espanha, Portugal e Japão são exemplos de vínculos criados nos séculos XIX e XX, quando o Brasil recebeu um grande número de imigrantes europeus e japoneses, que hoje se tratuzem em uma quantidade crescente de brasileiros e brasileiras presentes nesses países. Um dos elementos facilitadores desse fenômeno dá-se na forma do pedido de cidadania, sobretudo no caso da Itália. A obtenção de uma cidadania europeia também pode ser uma estratégia, aponta Baeninger, para o emigrante chegar a um terceiro país. “Muitos brasileiros conseguem a cidadania italiana e vão para os Estados Unidos.”
A redução demográfica, por outro lado, faz com que alguns países disponham-se a receber determinados imigrantes. Na Espanha, esse fluxo iniciou-se nos anos 1990 com a mão de obra no mercado secundário de trabalho, sobretudo para as mulheres. Em Portugal, Baeninger chama atenção para a quarta onda de brasileiros, a dita diáspora científica, em que doutores e pós-doutores daqui encontram melhores oportunidades de trabalho do outro lado do Atlântico.
Nos últimos anos, um movimento semelhante ocorre nos países nórdicos, indica a docente. Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia têm sido o novo lar de brasileiros altamente qualificados que atuam na área de ciência